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Lembranças de um irmão

Texto Steven Allain 

Publicado na HARDCORE Especial “Anjo da Guarda” (março / 15)

Assista aqui ao filme “When Your Dreams Speaks”, em memória a Ricardinho

“Moleque, surfo em qualquer mar que você cair!” disse, tentando soar confiante. “Ah, é? E isso aqui, você faz?” retrucou Ricardinho, remando numa bomba de 8 pés, prancha invertida com as quilhas para frente. Sorrindo, fica de pé enquanto a rabeta crava na água e faz um pêndulo de 180°. Ele dropa de base trocada e é aniquilado pelo lip na cavada. Volta à superfície dando risada – e leva o resto da série na cabeça.

Conheci Ricardo dos Santos em 2006 durante o ISA Games que aconteceu em Maresias. O técnico da Seleção Brasileira na época, Otoney Xavier, me puxou de canto e disse: “Este moleque vai longe, fica de olho nele”. Não sei se Ricardo competiu no evento ou se foi apenas pela experiência, mas lembro de saber, já naqueles tempos, que Otoney sabia o que dizia. Com isso, passei a observar o moleque da Guarda, que na época tinha 15 anos, com mais atenção. Recordo-me bem de um tubo de backside que ele completou no freesurf – justamente a foto que acabei publicando na revista para a qual trabalhava na época, acompanhada de uma pequena entrevista. Foi a primeira aparição de Ricardo na mídia – algo que ele nunca esqueceu. Só nos tornamos amigos, no entanto, no ano seguinte – durante uma longa estada em Asu, na Indonésia, onde dividimos um bangalô no extinto surf camp Gangsta’s Paradise, do nosso lendário camarada Enrique Pena.

A cena do drop de base trocada descrita aconteceu no maior dia da temporada, num mar pesado, torto e perigoso. Puxei o bico numa craca que certamente iria me esfolar vivo, e Ricardinho não perdoou. Ficou me sacaneando a queda toda até que eu retruquei com a pérola que abre este texto. Não demorou para que eu percebesse que teria de engolir minhas palavras, tendo em vista o que ele fez apenas alguns meses depois em Teahupoo – e continuou fazendo durante toda sua carreira. Como bom amigo que era, Ricardo nunca trouxe à tona minha infeliz afirmação.

Na época, porém, o “Bicuíra” (seu apelido naquela temporada) era apenas um garoto com muito potencial. Ninguém ligava que ele era o melhor surfista da ilha (aos 16 anos de idade). Ele era o mais novo e por isso era nosso dever fazer do grommet um homem – sacaneando-o a cada oportunidade existente. Só que Ricardinho levava tudo na brincadeira. Não importava quanta louça tinha que lavar ou quantas vezes por dia eu o mandava varrer o chão. Ele fazia tudo com um sorriso estampado no rosto, feliz por passar pelo ritual de aceitação dos surfistas mais velhos.

Mal sabia ele que já éramos seus fãs. Bastava o moleque dropar uma onda que começavam os sussurros – “O grommet quebra!”; “Esse vai dar trabalho”; “Surfa muito!” Era difícil não gostar do Bicuíra. Ele era alegre, confiante, esperto – e ao mesmo tempo humilde.

Em P-Pass | Crédito: Henrique Pinguim
Em P-Pass | Crédito: Henrique Pinguim

De cara, nos demos muito bem. Sou 12 anos mais velho que Ricardo, e nossa amizade se tornou rapidamente uma relação fraternal. Ele me bombardeava com perguntas sobre trips, mulherada, surf, baladas e a vida em geral. Eu ficava surpreso que um garoto que surfava tão melhor que eu estivesse realmente interessado nas minhas histórias, mas o moleque passava horas escutando minhas aventuras, roubadas e conselhos. Nunca me esqueço das suas gargalhadas quando as histórias ficavam apimentadas. Na água, os papéis se invertiam – era eu que aprendia com ele.

Nos anos seguintes, fizemos inúmeras surf trips juntos e tivemos várias sessões de sonho em lugares como Teahupoo, Fiji e Indonésia. Devo a Ricardo algumas das melhores e mais amedrontadoras ondas da minha vida – pois se não fosse ele berrando “Vai, porra!”, eu provavelmente teria puxado o bico em algumas delas. Mais que isso, foi com muito orgulho que vi Ricardo tornar-se um homem digno, correto e leal. Ele superou uma história de vida difícil – nunca conheceu o pai –, sofreu uma lesão séria nas costas e tornou-se mais forte por isso.

Cansado de ver sua amada Guarda do Embaú destruída pelo crescimento desorganizado, escreveu a políticos e autoridades numa tentativa de solucionar o problema. Inadvertidamente, tornou-se um dos líderes de sua comunidade.

No surf, virou um monstro. Foi com um orgulho de irmão mais velho que acompanhei suas maiores conquistas: a Wave of the Winter da Surfline; o prêmio A.I. – Andy Irons de melhor performance durante o campeonato de Teahupoo do WCT; e sua vitória nas triagens do mesmo evento. Nem parecia que há apenas alguns anos eu estava ordenando que ele varresse o chão lá em Asu.

Acima de tudo, Ricardo havia encontrado felicidade e a sentido em sua vida. Aos 24 anos, era um dos melhores freesurfers do mundo, ajudava a família, lutava por sua comunidade e já fazia planos de casar e ter filhos com a namorada de longa data, Karoline.

Tragicamente, tudo isso foi destruído por um policial bêbado – e pela corporação que permitiu que um indivíduo tão agressivo e instável continuasse a praticar barbáries impunemente.

Minha relação com Ricardo não era uma exceção. Outros grandes amigos seus, como Bruno Zanin, Andrei Malhado, Yago e Leandro Dora, Marco Giorgi, Alejo Muniz, Ari Góes, Mark Daniel, Nelson Pinto, Lucas Silveira, Adriano Mineirinho, Dado Guimarães e tantos outros certamente têm histórias de amizade semelhantes que atestam o mesmo: Ricardo era um amigo verdadeiro e um cara genuíno. Sua morte prematura deixa uma cicatriz profunda no coração de todos que o conheceram.

A última vez que vi Ricardinho foi no Hawaii, um mês antes de sua morte. Ele havia quebrado a clavícula em Pipe poucos dias antes, quando bateu violentamente no reef. A lesão o tirou das triagens do Pipe Masters – e eu estava lhe sacaneando por causa disso.

“Brother, é o Pipe Masters! Se fosse eu, caía na água mesmo com as costas quebradas…”, dizia em tom de brincadeira.

Ele respondeu que não seria justo tirar a vaga de outro atleta, sendo que não conseguia nem remar. “Vou deixar alguém que está 100% competir no meu lugar. Fica tranquilo”, disse ele com um sorriso maroto. “Ano que vem estou de volta.”

É assim que vou me lembrar de Ricardinho – generoso, confiante e alegre.

Descanse em paz, meu irmão.

Em Teahupoo | Crédito: Henrique Pinguim
Botando pra baixo em Teahupoo | Crédito: Henrique Pinguim

Abaixo, depoimentos de amigos em homenagem ao ídolo:

JEFF DIAS

“Já não era a primeira vez que fotografava o Ricardinho quando conheci a sua casa e família. Desde nosso primeiro encontro, fiquei com a impressão de um garoto do bem, coração mesmo, nunca rude. Com o tempo, inconscientemente, fui percebendo que era ainda mais irmão. Amistoso, parceiro, acelerava o trabalho com naturalidade. A sessão na casa dele, no seio da família, teve muito valor. Sempre tive um carinho por ele e agora só posso desejar de coração muita paz para toda a comunidade do surf.”

Tavarua, Fiji, 2011. Braços ao alto, Marco Giorgi | Crédito: Rafaski
Tavarua, Fiji, 2011. Braços ao alto, Marco Giorgi | Crédito: Rafaski

RAFASKI

“Fiz várias viagens com o Ricardinho e posso afirmar, essa em Fiji, esse dia, foi um dos dias mais felizes da vida dele. Esquerdas perfeitas e tubulares com apenas alguns amigos na água. Sempre elétrico, falando rápido, humor sarcástico, era impossível não se divertir ao seu lado. Parceiro nos momentos bons e nas roubadas, ele sempre puxava os limites de todos ao redor. Uma palavra define o Ricardinho: ‘ATITUDE’.

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Hawaii, 2012 – com Pedro Scooby e Peterson Crisanto | Crédito: Rafaski

PEDRO SCOOBY

“Eu estava agora no Hawaii com ele tirando onda e logo depois recebi essa notícia triste. O Ricardinho é isso mesmo, um moleque cheio de disposição e de atitude, muito talentoso, um futuro brilhante. Eu me lembro de que no dia dessa foto nós estávamos comemorando o título mundial com o Joel Parkinson, que é parceiro de equipe do Ricardinho, na casa da Billabong. Tiramos essa foto de brincadeira, fumando os ‘charutos da vitória’. É isso; alegria, brincadeira. Nós viajamos juntos desde muito novo, gravando filmes; eu, ele, o Marco Giorgi, o Gordo, o Camarãozinho… Entre brigas, zoações, curtição, um cara de opinião forte. Ficará marcado na história do surf mundial. Espero que ele esteja em um lugar bem melhor que o nosso, com altos tubos no céu.”

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Tavarua, Fiji, 2011 – com Lucas Silveira, Marco Giorgi e Willian Cardoso | Crédito: Rafaski

WILLIAN CARDOSO

“Essa foi com certeza uma das melhores viagens da minha vida: Ilha da Tavarua, Fiji, em 2011, barca para revista Hardcore; na qual Ricardo foi Capa. O Ricardo puxou os limites. Com certeza o melhor da galera, pegou os maiores e melhores tubos, deu aula. Nossa amizade começou cedo, época dos campeonatos Catarinense e Brasileiro Amador. No meu casamento, foi a namorada dele que pegou o buquê, momento que vamos guardar com muito carinho. Ricardo era uma pessoa do bem. Mesmo sendo o chatinho da galera, conquistava a todos com o seu jeito peixeiro da Guarda. Obrigado, Ricardinho, por tudo que você ensinou, é nosso ídolo.

Em Off The Wall | Crédito: Henrique Pinguim
Em Off The Wall | Crédito: Henrique Pinguim

HENRIQUE PINGUIM

“Lembro-me desse dia como se fosse hoje. O Ricardinho me perturbando no celular para irmos logo para a água. O mar não estava nada agradável ou convidativo, pelo menos para mim, mas a pilha e o gás dele eram tão contagiantes que dropei o mergulho. Dizia ele: ‘Bicho, vamos nem que seja para fazer um Instagram’. Nadamos por muito tempo até o mar começar a acertar na bancada de Off-The-Wall. E não é que o resultado aconteceu como ele previa: fotão, tubão. Depois fui obrigado a escutá-lo falando por horas no meu ouvido: ‘Te falei, não te falei que o mar ia melhorar pra gente?’ Foi só risada e alopração. Obrigado, amigo, por me tirar da cama naquele dia feio e chuvoso. Valeu muito a pena.”

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Ushuaia, 2013 | Crédito: William Zimmerman

WILLIAM ZIMMERMANN

“Durante 15 anos, tive a felicidade de conviver com esse cara que mudou a minha vida. Nós moramos, viajamos, brigamos e comemoramos muito juntos. Intenso, de personalidade ímpar. Ajudava sem pedir nada em troca. Defensor do santuário chamado Guarda do Embaú, era o líder nato da comunidade. Em 2013, ele me chamou para minha primeira trip internacional como fotógrafo, Patagônia.
Lá recebeu o título de ‘Senhor do Fogo’. Durante os 13 dias acampados, ele sempre acordava mais cedo e já acendia o fogo para sopa. Infelizmente, sua bebida preferida e idolatrada não fez parte da viagem: o café. Esse cara amava uma xícara de café preto sem açúcar. Tenho certeza de que onde estiver sempre haverá uma xícara para você, meu irmão. Muito obrigado pelos ótimos momentos e pelo aprendizados. Descanse em paz, eterno ídolo, guerreiro e herói.”

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Guarda do Embaú, 2010 – com Yago Dora | Crédito: Henrique Pinguim

YAGO DORA

“O Ricardo é o meu irmão mais velho. Quando ele começou a fazer o trabalho de treinamento com meu pai, chegava a passar a semana toda em nossa casa, passou a morar com a gente e assim criamos uma intimidade de irmãos. Ele faz parte da família, e por isso sentimos muito a sua partida. Viajamos juntos muitas e muitas vezes, tínhamos os mesmos gostos, as mesmas manias. Éramos fãs um do outro; me ensinou muito e espero que eu possa ter contribuído um pouco com ele também. O Ricardinho sempre me ajudou muito na minha carreira no surf, ele puxava o meu nível a cada sessão. Era o cara mais competitivo que eu já conheci, pois todo freesurf era uma bateria. Ricardo com certeza puxou a evolução do surf brasileiro.”

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Homenagem a Ricardo, Pipeline, 2015 | Crédito: Henrique Pinguim

HENRIQUE PINGUIM

“Minha foto mais triste relacionada ao Ricardinho… Todos os meus amigos foram para Pipeline para uma oração fraternal no dia da morte. Remaram todos para o outside, mas, eu não consegui sair de casa pela manhã, sem acreditar no que havia acontecido. Tínhamos perdido um amigo, um ídolo no surf. Inacreditável. Mais tarde, fiz o meu caminho habitual para Pipe e vi linhas perfeitas quebrando ondas e abrindo para ambos os lados. Os brasileiros tinham preparado uma singela homenagem com uma prancha cravada na areia. Decidi esperar por uma onda bonita e gravar esse presente para meu amigo eterno. Descanse em paz, Ricardinho.”

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