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A biografia de Adriano de Souza

Por Kevin Damasio
HC #328 – 28 anos, maio/2017
*Mineiro, Pipeline, 2015. Foto: Trevor Moran

 

Imagine um prédio abandonado de dez andares. Não há energia elétrica ou qualquer outra fonte de luz. A subida é um breu que impossibilita enxergar os degraus. Umidade e falta de ventilação dão um tom claustrofóbico ao ambiente. Não há ninguém a sua frente para lhe guiar. Mas você começa a subida, degrau por degrau. Tropeça, lhe falta o ar, o pânico ameaça a tomar conta. Mas há apenas uma alternativa. Você absorve as dificuldades e segue em frente, determinado. Quando alcança o nono andar, feixes de luz despontam, a esperança vence de vez a aflição. No lance seguinte, você finalmente alcança o andar mais alto.

Na saga de Adriano de Souza, narrada em detalhes no livro Como se tornar um campeão, nada foi ganho, tudo foi conquistado, das primeiras ondas no Canto do Maluf ao topo do mundo Pipeline. Ou melhor, houve um presente: a prancha velha de 30 reais que Ângelo de Souza, doze anos mais velho, comprou para o irmão caçula de 8 anos de idade.

No Guarujá, Mineiro aprendeu a surfar sozinho, incentivado pelo irmão militar, quando este percebeu que o destino do caçula poderia ser o mesmo de outros garotos da favela Santo Antônio, onde moravam: o tráfico de drogas.

Pranchão embaixo do braço, marmita com o almoço do mais velho, Mineiro andava até a Praia do Tombo, entregava o rango no trabalho do irmão e caía na água. Já nas Pitangueiras, saía do mar apenas quando a fome o exauria, e então contava com a cortesia de Jairo Nobre, dono do Restaurante Tahiti. Quem lhe deu os primeiros toques técnicos foi um ícone local, Alcino Neto “Pirata”. Desde pequeno, Mineiro sabia que tinha talento, visualizava o topo do mundo, mas entendia que precisaria trabalhar triplicado para atingir seus objetivos. 

Márcia Vieira, a autora do livro, possui uma grande experiência jornalística. Trabalhou no Jornal dos Sports, O Globo, Jornal do Brasil, Veja Rio, Estadão. Conta no livro que nunca havia se deparado com tamanho personagem. “A improvável vida de Adriano”, escreve Márcia, na apresentação, “demonstra que é possível agarrar uma oportunidade – no caso dele, uma prancha de surf aos oito anos – e reinventar o destino”.

Adriano de Souza e o caneco de 2015. Foto: Henrique Pinguim

Em suas 176 páginas, Como se tornar um campeão retrata as duas décadas de trabalho de Mineiro até seu maior objetivo na carreira. O início no surf, os primeiros títulos amadores e juniores – muitos contra surfistas mais velhos –, o patrocínio da Hang Loose aos 12 anos, a primeira temporada havaiana. Em 2004, o título mundial júnior – aos 16 anos, o mais jovem a conquistar o feito. Em 2005, um desempenho avassalador no tortuoso WQS, que lhe rendeu o primeiro lugar no ranking, recorde de pontos e o acesso à elite. Uma estreia efusiva no Tour em 2006, com semifinal na Gold Coast e uma temporada motivadora. Na sequência, um 2007 em que fracassou, fez as contas e apostou na perna brasileira do WQS: conquistou as duas etapas e se manteve na elite.

Em paralelo às competições, Mineiro ansiava por reconhecimento internacional, crente que lhe facilitaria o caminho ao título máximo. Mas só recebia negativas, por exemplo, ao propor para os patrocinadores participar de campanhas internacionais. Chegou até a morar na Califórnia, no quarto dos fundos do shaper Timmy Patterson, para ficar mais próximo dos players. Com isso, a Oakley deixou de ser seu principal sponsor. O bico da prancha de Mineiro ficou branco até que assinasse com a Pena, da qual sentiu orgulho por ser nordestina, assim como suas raízes. Os pais, Jonas e Luzimar, são migrantes do sertão do Rio Grande do Norte. Depois, ele assinou contrato de bico com a Hawaiian Dreams e com a empresa de marketing esportivo XYZ, com imagem gerenciada por Felipe Borges.

Mineiro nunca perdeu o foco e sempre manteve o equilíbrio e determinação, principalmente a partir da vitória na etapa de Mundaka, em 2009, sua primeira no WCT. Reconstruiu e angariou respeito à imagem do surfista brasileiro na elite. Pavimentou o caminho para a ascensão de Jadson André, Gabriel Medina, Filipe Toledo, Miguel Pupo, Ítalo Ferreira e toda a tempestade brasileira que chegou com o pé na porta, apoiada na referência Adriano de Souza.

Na relação com seu primeiro manager, Luiz Campos “Pinga”, o aprendizado foi uma via de mão dupla, um cresceu com o outro. Depois, passou algum tempo sem um treinador, até iniciar o trabalho com Leandro Dora, na etapa de Jeffrey’s Bay, em 2015 – a peça que faltava para refinar a técnica, reforçar a confiança e alcançar sua maior glória.

No Oi Rio Pro, Mineiro reinou soberano, foi campeão invicto e segue forte na briga pelo bimundial em 2017. Foto: WSL/Smorigo

Em dezembro de 2014, conversei com Mineiro minutos antes do duelo entre Alejo Muniz e Mick Fanning, que garantiu o título mundial a Gabriel Medina. Ele assistia ao Pipe Masters em seu apartamento no Guarujá. Pela primeira vez em seus anos na elite, ele não disputava a etapa. Precisava se recuperar de uma lesão em tempo recorde e chegar em 2015 “120 por cento”. Como também revela no livro, Mineiro soava triste por estar longe do Hawaii, um pouco frustrado por não ser o primeiro brasileiro campeão do mundo, mas feliz por Gabriel, “quem mais me deu o apoio rumo ao título mundial e é o atleta mais completo que o Brasil já teve”.

Em 2015, Adriano de Souza passou por cima dos incômodos da lesão. Vestiu a lycra amarela por cinco etapas, até perdê-la para Mick Fanning após Trestles. Em Portugal, o amigo e ídolo australiano caiu de cara, e Mineiro também. O surfista do Guarujá, aos 28 anos, chegava no Pipe Masters novamente com chances de título, mas o roteiro de cinema favorecia o desfecho feliz para o tetra de Fanning. No script, um ataque de tubarão em J-Bay, vitória em Trestles na etapa seguinte e perda do irmão durante o Pipe Masters.

Adriano se debruçara em Pipeline desde 2013, quando começou a se hospedar na casa de Jamie O’Brien. Até então seu calcanhar de Aquiles no Tour, as perdas precoces na etapa não contavam a seu favor. Como se tornar um campeão narra com minúcia “A última batalha” de Mineiro. Com muito trabalho, ele surpreendeu a todos e venceu o circuito mundial mais disputado de todos os tempos. O’Brien o carregou para o palanque duas vezes: após a vitória de Mineiro na semi contra Mason Ho, e depois pelo título brasileiro inédito no Pipe Masters, diante de Medina. Honrou a memória do amigo Ricardo dos Santos, que falecera em janeiro daquele ano.

Nas conversas com a escritora Márcia Vieira, Adriano de Souza, hoje com 30 anos, revelou que tem gás para mais uma década de disputa pelo topo de uma elite cada vez mais concorrida. Seu rendimento nas baterias lhe dirá a hora de parar e se dedicar a outro projeto tão nobre quanto: ensinar o caminho da vitória para crianças e jovens que, assim como o campeão, vêm de contextos humildes, perigosos e delicados decorrentes da desigualdade social. Como disse à autora do livro, “a luta pode ser difícil, mas vencer é possível”.

Esta resenha foi publicada originalmente na HARDCORE #328, de maio de 2017.

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