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Tom Carroll de Cabeça Limpa

 


O bicampeão mundial no Hawaii, em dezembro de 2013, durante a cerimônia do Eddie Aikau – de cabeça limpa. Foto: Tom Servais/A-Frame

 

Por Steven Allain

 

No final do ano passado, o lançamento do livro TC: Tom Carroll sacudiu o mundo do surf. Na obra, coescrita com seu irmão e renomado jornalista, Nick, o bicampeão mundial Tom Carroll revelou como passou quase uma década viciado em cocaína, ecstasy e anfetaminas. Sua dependência era um segredo desconhecido do grande público até 2006, quando Tom chegou no fundo do poço e teve que ficar meses internado numa clínica de reabilitação. A mídia especializada, com raras exceções, preferiu não noticiar a luta de Carroll. Por isso mesmo, o lançamento do livro veio como uma bomba para a comunidade do surf e fãs do australiano. Numa entrevista reveladora durante a última temporada havaiana, em um café em Haleiwa, um dia antes da decisão do título mundial entre Fanning e Slater, um dos maiores ícones do esporte falou sobre seus momentos mais sombrios – e como precisa lutar diariamente para continuar no caminho certo. 

HC: Por que decidiu escrever um livro e revelar seus vícios? Você poderia simplesmente nunca ter dito nada…
Tom Carroll: // Sim, eu poderia ter mantido minha recuperação privada, pois é algo muito pessoal mesmo. Mas a verdade é que não podia me recuperar sozinho. Eu precisava de outras pessoas. Senti que se tinha algo que podia fazer por outros que estejam sofrendo com a doença do vício seria compartilhar minha história, porque essa doença é realmente algo muito solitário, desolado e amedrontador. Então eu quis abrir os olhos das pessoas para a possibilidade da recuperação, não importa como elas estejam se sentindo. Eu mesmo não queria entrar na reabilitação. Eu achei que poderia continuar usando. 

Você achou que poderia parar a qualquer momento?
// Eu sabia que não conseguia parar. Eu sabia que estava numa situação muito perigosa. Eu dizia para mim mesmo “estou OK, enquanto eu continuar a usar a droga, estarei OK”. O que claramente não foi o caso. E dividir essa jornada com outros é importante. Eu não conseguiria ter feito isso sem meu irmão, Nick. Não dessa maneira, num livro, indo direto ao ponto e permitindo que as pessoas acompanhassem passo a passo essa jornada.

Seu irmão sabia que você era viciado ou isso foi algo que você contou?
// Bom, as pessoas se ligam. A gente sabe quando alguém está com problemas. Eu vejo amigos hoje e eles estão totalmente dominados. Dominados, pois tomaram um caminho muito nocivo e perigoso. E isso acontece a toda hora. Está acontecendo com alguém neste exato momento. E você precisa ser duro com a pessoa que ama e isso não é fácil. Você só consegue ajudar até um certo ponto, pois a recuperação depende do doente querer se recuperar. É um jogo de paciência e amor.

Foi assim com Nick?
// Sim. Ele conseguia ver que eu não estava bem. Ele se sentia impotente, não sabia o que fazer. No livro você vê isso, há momentos em que ele expressa sua raiva. Olhando para trás, percebo que muitas coisas ruins tiveram que acontecer para que eu acordasse. 

De que maneira seu irmão o ajudou no livro?
// Ele se colocou no livro, de uma maneira que só um irmão poderia. É um dom incrível, saber estruturar um livro e oferecer ao leitor uma maneira de absorver a informação. Ele tem esse dom. Não só isso, ele é meu irmão. Ele ingressou num território perigoso ao escrever essa história. Teve que descarregar toda sua história e suas angústias no livro, para que o projeto então pudesse andar para frente.

Senão não seria genuíno.
// Isso mesmo. O livro tinha que falar de nós, de nossa própria verdade. É preciso muita coragem para escrever sobre esses aspectos da vida. E Nick aceitou o desafio. Sua ética de trabalho e a maneira como soube chegar no “x” da questão foram o que fizeram o livro.

Você ficou preocupado antes do livro sair?
// Medo natural, sabe? Quer dizer, o livro ainda está em lançamento.

Então você ainda está no processo?
// Sempre no processo. A história vai se desenrolar a sua própria maneira. Eu me lembro da semana antes do livro sair e meu vício tornar-se público, no programa 60 Minutes. Eu gravei o programa numa segunda-feira, e na terça-feira acordei às 2:30 da manhã e pensei “merda, o que eu fiz?”. Se eu acordo de madrugada tudo está negro, cru, em seu estado mais pesado na minha mente. E foi isso, foi um momento pesado para mim. Mas agora eu tenho as ferramentas para lidar com um pensamento como esse. Antes, essa incerteza teria me afetado por semanas e eu teria me afundado nas drogas. É um exemplo clássico do que pode acontecer na mente de um adicto.

Como tem sido a repercussão?
// Tem sido incrível. É engraçado, pois eu continuo esperando por algo pior. “Cadê a série do dia quebrando na minha cabeça?”. O surf é uma grande analogia para a vida. Eu sinto que às vezes preciso continuar remando para o outside, um pouco mais para o fundo, pois a próxima série pode ser maior do que a última. As pessoas têm sido muito graciosas comigo, o que é incrível. Tenho sentido muita… acho que posso dizer positividade, para simplificar. Só que eu não procuro positividade. Muita gente não sabia da minha doença e eu estava preparado para isso. Era o momento certo. 

Você está limpo há sete anos. Ainda tem vontade de usar?
// Sim. É um pensamento aleatório, que surge do nada, nos momentos mais bizarros. Às vezes eu sonho com a droga. Mas não é real, é parte do processo. Hoje a droga não me domina mais.

Dominou você por muito tempo?
// Sim, com certeza. E pode voltar a dominar a qualquer momento. A recuperação é um processo contínuo, não vai embora. O viciado está dentro de mim o tempo todo.




 

Deve ser um processo e tanto aceitar isso, que você não vai conseguir se curar e simplesmente voltar a viver normalmente.
// Exatamente, não adianta achar que existe uma “cura”. Eu tentei tantas vezes acreditar nisso. Eu comecei na cocaína, depois fui para o ecstasy e depois acabei nas anfetaminas, pois achei que conseguiria administrar meu vício. Eu não segurava a onda com a cocaína ou o ecstasy. Minha vida era um caos com essas drogas. Quando descobri as anfetaminas, achei que conseguiria levar uma vida normal usando a droga. Mas uma hora a conta chega. É uma ilusão. É como uma alergia que coça. Você sabe que se coçar a pele só vai piorar, mas você não consegue parar.

E a coceira só aumenta.
//
Isso mesmo. Ela se alastra pelo corpo e você continua coçando. Por isso que tenho que trabalhar diariamente na minha recuperação. No começo é muito difícil, mas no momento que você aceita sua doença e é honesto consigo mesmo, as coisas mudam. E você tem que rezar por aceitação, pois a parada é um programa espiritual mesmo. Não precisa ser algo ligado a religião, de maneira alguma. Mas tem que ser o oposto do que ocorre lá fora na “vida real”. Você tem que olhar para dentro e trabalhar seu espírito. Nessa hora você tem que aprender a pedir ajuda. Você precisa de outros, especialmente alcoólatras e viciados. Eu nunca fui muito de beber, mas me identifico com o alcoolismo, pois é um vício. É a maldita coceira. Ela faz seu corpo sangrar e você continua coçando. Continua indo na direção errada. É foda.

Você disse que muita gente ficou surpresa ao saber de seu vício. Acha que a percepção do público sobre você mudou?
//
Vai mudar. Quando as pessoas ficam sabendo de algo assim, normalmente elas têm duas reações: ou te julgam; ou são forçadas a olharem para si mesmas.

E nenhuma dessas reações é muito confortável.
//
É, não mesmo. Mas no momento, para mim, o importante é ficar centrado e não pensar nas opiniões das pessoas. Hoje eu sei que se me encontrar numa situação difícil novamente – e eu rezo para que isso não aconteça – eu irei pedir ajuda. E quem sabe o que pode acontecer no futuro? Eu posso me encontrar numa situação que seja desfavorável para mim e eu dê minhas costas para a reabilitação, assim como tantas pessoas o fizeram após anos sem usar drogas. No programa do qual eu participo conheci um cara que me ajudou muito na minha recuperação, pois já havia passado por isso. E depois de 10 anos sem usar, ele teve uma recaída. Ele voltou a usar por oito dias e quase morreu. Hoje ele está limpo novamente, mas foi um exemplo do que pode acontecer. E eu o vi naquele estado, após usar cocaína por oito dias seguidos, sem dormir – ajudei a levá-lo para uma clínica. Foi horrível. Eu olhava para ele e pensava “esse pode ser eu”. E parte de mim pensava “onde será que ele deixou o resto da droga?”. Eu rezo para nunca voltar a usar. Mas não há garantias.

 

Como foi a notícia para sua família? Sua mulher sabia, mas suas filhas não, certo?
//
Eu tive que contar para elas antes de entrar na reabilitação.

Então o livro não foi uma surpresa?
// Não, elas já sabiam de tudo. E me apoiaram 100%. Mas eu fiquei preocupado com o que poderia acontecer na escola da minha caçula. Ela tem 11 anos de idade e uma notícia como essas pode sempre gerar problemas, mas até agora está tudo bem.

Você divorciou-se da mãe de suas filhas. Isso foi antes do livro?
//
Nos separamos alguns meses depois que me internei. Estávamos juntos há muitos anos. Ela me viu passar por tanta coisa negativa, por tanta mentira, e aquilo simplesmente destruiu a confiança.

E uma vez que a confiança se vai…
//
Uma vez que ela se vai, demora muito para recuperar o que existia antes. Ainda temos um amor entre nós, mais a ver com uma amizade profunda e uma parceria por causa dos filhos. Mas nunca voltaremos a ter o que tínhamos. E isso é muito, muito triste. Mas temos que olhar para frente. Eu estou olhando para frente. 

Você falou do julgamento das pessoas. Eu li nas redes sociais alguns profissionais envolvidos com o mercado sugerindo que você talvez devesse ter seus títulos mundiais anulados, pois usava drogas. Usaram Lance Armstrong como exemplo.
//
(risos) Isso é engraçado. Durante os anos que venci títulos mundiais eu estava praticamente limpo. Eu era um atleta limpo. Trabalhei muito para conquistar meus títulos e tenho muito orgulho disso. Não sinto que tenha que me defender nessa questão. Não há nada que possa apagar essas conquistas. Se eu tivesse usado tudo que Lance Armstrong usou para poder vencer e depois fizesse o impossível para encobrir a trapaça, então seria diferente. Mas comparar a situação de um ciclista no cenário competitivo deles com a situação de um surfista no nosso universo é loucura.



Seu surf mudou nesses sete anos longe das drogas?
//
Boa pergunta. Eu sabia que se havia um lugar onde meu corpo poderia voltar a ser ele mesmo, era no oceano. Então eu surfava o máximo que podia. O problema é que só conseguia surfar por períodos muito curtos, já que estava doidão de anfetaminas o tempo todo. Eu não conseguia ficar parado, sentar e esperar a série. Eu sempre fui meio fominha, sempre peguei muitas ondas, imagine sob efeito da droga então (risos)? Não era uma boa mistura. Eu estava desconectado e isso ficava claro no mar. Hoje meu surf me permite estar muito mais presente no oceano. Hoje tenho uma capacidade bem maior de sentir as ondas e de escolher o equipamento correto. Hoje entendo o que está acontecendo sob meus pés.

Mais ainda do que quando tinha 20 anos?
//
Sim. Os benefícios de estar limpo e sóbrio são incríveis.

Para quem olhava de fora, você estava quebrando mesmo na época de uso pesado. 
//
Eu não usava para surfar. Eram coisas opostas, o surf e a droga. Não fazia sentido. O surf me salvou, essencialmente, pois me mostrou que havia algo consistente na minha vida. Hoje eu consigo surfar ondas grandes, por exemplo, e fazer uma escolha consciente se eu quero eu não estar naquela situação. Se eu devo botar para baixo ou puxar o bico. Hoje tenho esse controle. Antes ele não existia.

Você simplesmente botava para baixo.
//
É, eu botava para baixo sem nem pensar nas consequências, se seria aniquilado. Na época isso era uma qualidade. Foi algo que me fez descobrir meus limites e minhas capacidades. Mas atualmente não preciso mais ser inconsequente no mar. Entro em sintonia com as ondas mais rapidamente e posso fazer uma decisão clara. Se não estou curtindo, saio do mar. Se estou me divertindo, tento sentir o momento e estender esse ‘feeling’. Hoje o surf me traz muito mais prazer do que em qualquer outra fase da vida.

Isso é incrível, considerando-se que a maioria de nós acredita que o melhor surf acontece antes dos 40 anos de idade.
//
É assim para mim, não sei como outras pessoas se sentem no mar. Acho que tudo está relacionado à suas expectativas e o quão reais elas são. Durante os anos é óbvio que eu tive que aceitar minhas limitações. Você percebe que não consegue mais dar uma batida tão vertical como antes. Eu não consigo mais fazer certas manobras. Meu surf pode ter sofrido em performance, mas o prazer de surfar hoje é maior.

Existem muitas histórias de surfistas parecidas com a sua – de envolvimento pesado com drogas. Por que isso? 
// Esse é um estigma ligado ao surf há muito tempo. Mas na realidade não é um problema exclusivo do surf, muito pelo contrário. Na minha reabilitação conheci gente de todos os tipos, médicos, executivos, donas de casa. A droga é uma entidade que não liga para isso. Está por todos os lados. Mas nós humanos adoramos tentar ter um controle falso da situação, rotulando e julgando – o que é um mecanismo de defesa. Como surfistas, nos relacionamos com a natureza de uma maneira visceral, estamos muito próximos dela. E isso nos desafia, dá medo, traz emoções à tona. E a droga tem esse mesmo efeito para muita gente. Fumar maconha era algo que combinava com meu surf quando eu comecei. Eu ficava no mar flutuando, sentindo o mar e a luz e as ondas. Era incrível. Eu adorava fumar e ir surfar. Mas essa relação termina. E o que acontece é que você continua fumando, perseguindo aquela sensação maravilhosa inicial, mas ela desaparece. Não é só no surf, acontece em todos os esportes. Mas as pessoas adoram rótulos. Eu sinto isso muito na grande mídia, especialmente que a história do meu vício agora é pública, eles adoram rotular o surfista de drogado – é algo fácil, que os distancia do problema, os faz pensar que só acontece com “aqueles surfistas vagabundos”. O que é mais engraçado é que, a meu ver, o surf é um dos esportes mais limpos do mundo. Sério, quando comecei a surfar nos anos 70, a coisa era muito diferente, todos os surfistas usavam drogas.

E hoje os melhores surfistas são atletas sérios.
//
Todo mundo entrou nessa. O esporte simplesmente não tem mais essa influência da cultura de drogas, eu pelo menos não a vejo em lugar nenhum. E espero que continue assim, que o surf não se torne como o ciclismo, por exemplo, em que o uso de drogas para performance se tornou algo tão comum. Ano passado eu fiz parte da celebração dos 50 anos da Surfing Australia, que é nossa associação nacional de surf. Foi uma noite incrível, todas as lendas do esporte estavam lá, bem como algumas das pessoas mais importantes do nosso governo, todas apoiando o esporte de uma maneira irrefutável. Eu olhei para aquilo e quase não acreditei. Numa época em que jogadores de Rugby estão envolvidos com anabolizantes, jogadores de futebol flagrados com cocaína, Lance Armstrong perdendo seus títulos, todos esses esportes tradicionais envolvidos em escândalos – e o surf recebendo tanto apoio e reconhecimento. É quase inacreditável o caminho que o surf percorreu. Quando eu comecei, era um esporte de marginais e vagabundos. Hoje temos reconhecimento e suporte de toda a sociedade.


Nick e Tom Carroll (à frente) e Mike Newling – nos anos 80, as noitadas regadas a cocaína e álcool andavam lado a lado com o Circuito Mundial. Foto: Random House

Mudando de assunto, existe um momento mais marcante na sua carreira?
//
Essa é difícil. (longa pausa) Acho que foi minha primeira vitória em Sunset, em 1982. Foi muito especial. Eu tinha 21 anos e vencer meu primeiro evento, ganhando de Mark Richards, em Sunset, de backside, foi algo quase inexplicável. 

Muita gente associa sua imagem a Pipe, por causa de suas três vitórias lá. Mas você brilhou também em Sunset. Qual sua relação com aquele lugar?
//
Eu amo aquela onda. Mesmo antes de ir ao Hawaii, eu já sonhava com aquela onda. Queria surfar Sunset como Barry Kanaiaupuni, Ben Aipa e Bill Hamilton. Eu tinha as imagens das revistas vivas na minha mente. A maneira como BK cavava em Sunset e o estresse que aquilo causava na prancha, pela maneira como a água era projetada na borda. Eu não sou como Kelly, que nunca se deu bem em Sunset, que nunca teve um foco em Sunset. Ele é completamente capaz de vencer lá, logicamente, mas para isso você precisava estar emocionalmente envolvido com a onda. É uma onda difícil, forte, imprevisível. E eu sempre me identifiquei com o desafio que ela representa.

Você já disputou títulos mundiais aqui no Hawaii, na reta final, no Pipe Masters. Quando você vê uma semana como essa, em que estão todos na expectativa da disputa entre Mick e Kelly, sente saudades?
//
Hoje, mais do que nunca, eu adoro isso. É por isso que estou aqui, quero ver essa briga de perto. Em 1988 eu me desconectei da competição em um nível muito profundo, quando perdi meu terceiro titulo mundial por causa de uma interferência de remada em Pipe. Eu perdi minha confiança no esporte naquele dia. Foi algo que teve um efeito muito pesado em mim e eu só percebi o quanto me afetou anos depois. Eu só continuei competindo pois queria vencer certos eventos antes de parar. Queria vencer mais em Pipe, queria vencer Margaret River. Eu continuei no Tour por mais alguns anos, mas minha desilusão era grande demais. Eu tentava vencer, mas no fundo não estava ligando para aquilo. 1988 foi um grande ano para mim, tinha trabalhado duro para chegar no Hawaii com a liderança. Estava literalmente na mesma posição que Mick se encontra agora. Nada ia me impedir de conquistar o título. Aí me deram uma interferência de remada… foi brutal, eu consigo sentir ainda hoje. Essa dor ainda existe, não vai embora. Sinto que tive que aceitar como aquilo me afetou e só agora meu entusiasmo pelo esporte retornou. Para te falar a real, só percebi agora, nessa entrevista, que foi apenas nos últimos 4 ou 5 anos que aceitei o que aconteceu naquele dia. Mas ao menos hoje eu voltei a ter prazer em assistir duelos como esse. Sei pelo que esses caras estão passando.

Na sua época também existiam grandes rivalidades no Tour. Era muito diferente de hoje?
//
Pode parecer que sim. A gente podia extrapolar mais, eu acho. Podia explorar nossas personalidades no cenário competitivo. Não tínhamos tanta coisa de fora influenciando. Hoje você tem que jogar o jogo de uma maneira diferente, tem muito mais coisa envolvida. Atualmente, a sofisticação é bem maior, em todos os sentidos, e isso é demais. Na minha época era mais cru. Era outro mundo. Mas algumas coisas são iguais, a competitividade, a vontade de vencer seu oponente. Hoje, os atletas têm grandes oportunidades e um tipo de apoio, emocional, físico, espiritual, bem maior.

Como você vê a ZoSea nessa nova fase? O surf precisa mesmo ser mainstream?
//
Essa é a grande questão, se eles vão conseguir lucrar com o surf. É tudo uma questão econômica e se tem alguém que quer bancar o Tour e assumir esse risco, isso é positivo. Não sei se o esporte está pronto para essa mudança, só o tempo dirá. Sei que Kelly está pressionando por essa mudança há tempos. Acho que o esporte precisava muito crescer além da indústria de surfwear. O surf competitivo mama na teta das marcas de surf há muito tempo, o que é algo muito dúbio. Você tem o evento da Quiksilver, da Billabong, da Volcom, da Rip Curl, todo o Tour com esse direcionamento. E o Brasil nessa história? E o Japão? Se o esporte quer crescer, precisa ir além do surfwear e fechar novas parcerias. Mas é difícil para o surf atrair um interesse além de seu pequeno universo. E esse será um dos desafios. Por exemplo, eu duvido que ontem em Pipe a maioria do público na praia estava realmente entendendo o que estava assistindo. Eles não estavam observando as minúcias técnicas de John John atrasando no tubo. Eles ainda não chegaram nesse nível de entendimento. O grande público acha interessante o simples fato de que tem gente surfando aquelas ondas incríveis e não se importa muito com quem sai vencedor. Entender as nuances, as estratégias dos surfistas quando tem duas baterias rolando ao mesmo tempo, isso é muito difícil para o não surfista. Não sei nem se o grande público precisa mesmo entender tudo isso. Mas certamente ele precisa estar emocionalmente envolvido para se manter interessado. E esse será o grande desafio, apresentar o esporte de uma maneira que as massas se sintam envolvidas com as disputas e as personalidades e queiram acompanhar o Tour.

Você conhece Kelly como poucos, desde sua infância, quando ele ainda não era o Slater que conhecemos hoje. Como é sua relação com ele e como ela evoluiu ao longo dos anos?
//
Essa evolução que você menciona foi muito legal. Existe uma ligação muito legal entre Kelly e eu, na maneira como somos sensíveis ao que gostamos de fazer, seja design de pranchas ou o ato de surfar uma onda. Tenho uma profunda admiração por ele. Eu acho que é incrível a maneira como ele consegue crescer e amadurecer emocionalmente. Ele encara situações de muita pressão com coragem e cresce com isso. Sua performance cresce, sua habilidade, seu conhecimento sobre si mesmo e seus adversários, sua habilidade de saber separar o lado emocional. A maioria das pessoas resiste a grandes desafios, porque eles são desconfortáveis. Mas é quando você os encara que existe crescimento mental e espiritual. Kelly consegue repetidamente encarar grandes desafios com honestidade e sair mais forte deles – até quando perde. Então ele é uma grande inspiração para mim, pois eu não conseguiria fazer o que ele faz. E, ao mesmo tempo, eu sei que ele é apenas humano. Para mim, ele merece toda minha admiração. Estar próximo dele durante toda sua jornada foi uma honra.



Você venceu duas vezes, em 87 e 88, o evento que foi um marco no surf brasileiro, o Hang Loose Pro na Joaquina, em Florianópolis. Quais suas lembranças dessa época?
//
Vencer no Brasil foi incrível. Ambas foram vitórias determinantes para mim. Mas as baladas depois dos eventos me assustavam (risos)! Mas eu me diverti muito, não tem nada que eu faria diferente quando lembro dessa época. Toda vez que ia ao Brasil era o campeonato primeiro, e depois as festas. Era divertido mas perigoso (risos). Tinha muita cocaína (mais risos). Sempre fui muito bem recebido no Brasil e sempre senti uma grande afinidade com os brasileiros, mesmo com a barreira do idioma. Os brasileiros são ativos, raçudos e eu me identifico com isso. Eu adoro a maneira como os brasileiros correm atrás de seus objetivos, eles não desistem, não se deixam abalar, é parte da cultura. Isso também é parte da cultura australiana, mas de uma maneira mais comedida, mais travada. Eu acho frustrante essa parte mais reservada da cultura australiana. No Brasil não existem reservas, é tudo na sua cara. E eu gosto disso.

Quando você se recusou a competir na África do Sul, em 85, por causa do Apartheid, basicamente entregou um título mundial quase certo. Foi uma decisão difícil?
//
A decisão foi fácil. Lidar com a repercussão é que foi difícil. O peso daquela decisão provou ser bem maior do que eu havia previsto. Mas eu não conseguia aceitar a realidade do racismo, não podia ser conivente. O engraçado é que fui muito criticado na época. Mas eu nunca me arrependi de ter tido uma postura em relação a algo tão triste e tão errado quanto o Apartheid.


Após se afastar do Tour como competidor, Carroll dedicou-se a desbravar ondas geladas e inóspitas ao lado do amigo Ross Clarke-Jones. Hoje, Tom Carroll encara desafios e ondas ainda maiores: assumir e se livrar dos vícios. Foto: Red Bull Pool Content
 

Por que os surfistas são menos engajados politicamente hoje em dia?
//
Acho que as pessoas se engajam em algo quando aquilo as afeta. As coisas estiveram muito cômodas para nós economicamente nos últimos 20 anos. Quando as coisas ficam mais complicadas e menos confortáveis é que nasce a motivação para buscar mudanças. Hoje você vê mais motivações aparecendo, especialmente aqui no Hawaii, com a situação da Monsanto afetando diretamente a coisa que mais amamos, por exemplo. O Hawaii é o berço espiritual de todos os surfistas. Então, quando esse lugar é ameaçado por multinacionais envenenando a terra e os rios, a reação dos surfistas é surpreendente. Basta ver todo o movimento encabeçado por Dustin Barca. Veremos mais movimentos como esse no futuro, em que surfistas serão mais motivados a lutar por causas ecológicas e humanitárias, e a política tem que estar incluída nisso. Não podemos evitar a política. 

Qual acha que será seu legado no surf?
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Meu legado? Porra… não sei. Acho que não cabe a mim responder, deixo isso para outras pessoas. 

O que o futuro reserva para você?
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Estou tentando renovar meu contrato com a Quiksilver, mas tem sido um ano estranho. Então estou procurando outras fontes de renda para continuar a crescer. Financeiramente, quero construir algo para deixar para minhas filhas e meus netos. Eu amo qualquer coisa relacionada ao mar, então vou me focar no design e na construção de uma linha de Stand Up Paddle. O SUP está num momento meio controverso, os surfistas acham estranho esses caras com remos crowdeando o lineup. Mas está crescendo e pode ser uma oportunidade. Também gosto muito das pranchas de remada oceânica e gostaria de trabalhar com isso. Mas, principalmente, quero viajar o mundo e falar desse livro, além dos círculos do surf. Gostaria de ajudar as pessoas e crescer com isso. Quero ser um pai melhor e fortalecer meus relacionamentos e laços com a família. Quero crescer mentalmente, fisicamente, emocionalmente e espiritualmente. Ser uma pessoa melhor e um bom pai. Depois de tudo que passei, é só o que quero.

Para finalizar, quem você gostaria de ver campeão amanhã?
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Essa é difícil. Eu tenho que ficar em cima do muro nessa questão (risos). É claro que em teoria, se você olhar o histórico de cada um, Kelly leva vantagem quando o assunto é Pipe. Ele surfou muito bem nos primeiros rounds e pelo que o conheço, ele está com aquele olhar, aquela aura, de que veio para vencer. Estou superansioso para ver essa disputa amanhã. Adoraria ver Mick levar seu terceiro título. Ele trabalhou tanto para chegar até aqui e demonstra um comprometimento com o esporte que é raro de ver. Seria demais ver todo seu esforço recompensado. Independente do resultado, ficarei feliz pelo vencedor.*

*Nota: Mick Fanning sagrou-se Tricampeão Mundial um dia após esta entrevista. Já Kelly Slater, venceu o Pipe Masters pela sétima vez.

*Esta entrevista foi publicada na Revista Hardcore 293, de março de 2014

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