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LEITURA DE ONDA

 


Mark Richards é onipresente na história do surf dos anos 1970. Foto: Merkel/A-Frame

Por Julio Adler

Existe algo que pode se chamar de literatura feita por surfistas? Não seria isso um paradoxo, já que as palavras literatura e surfista são raramente lidas numa mesma sentença, salvo em gozações dos amigos metidos a intelectuais? A resposta, debochada, devolve a pergunta: “Sim, por que não?”

Descobertas e redescobertas das melhores ondas do mundo e as fantásticas aventuras de quem arriscou tudo pelo prazer fútil de surfar. A mitológica morte de Dick Cross em Waimea Bay. Duke dropando uma onda tão grande e longa que até hoje duvidamos da sua veracidade. Jeff Hackman traficando para manter seu vício de pegar ondas. As aventuras do Mickey Dora por um mundo de fantasia e crimes. Rabbit Bartholomew escondido dos black trunks irritados, sedentos por sangue australiano. Greg Noll próximo de dropar a maior onda jamais surfada.

Não fosse pela publicação dessas histórias, teríamos que confiar no que nos contam entre uma onda e outra – e só. No século passado, tínhamos apenas a memória para recorres.

Os havaianos lembravam de tudo. Histórias eram contadas pelos mais velhos, e a única forma de linguagem que eternizava os contos dos reis que desafiavam os deuses era o desenho. A escrita, como conhecemos hoje, não existia.

Foi quando o Capitão James Cook inaugurou, sem querer, o que conhecemos hoje como… Bem, digamos que foi Cook quem fez a primeira descrição do esporte sagrado dos polinésios. Ele nunca será reconhecido pelo seu valor literário, mas para os surfistas, o que ele fez tornou-se a pedra fundamental do esporte – principalmente pelo seu deslumbramento e poesia. Fosse escrito 40 anos mais tarde, seus relatos seriam, no máximo, piegas.

Foram Mark Twain (As Aventuras de Tom Sawyer, entre outros), Jack London (Lobo do Mar e Caninos Brancos) e Herman Melville (autor de Moby Dick, um dos grandes clássicos da literatura mundial) que deram ao surf a chance de ser narrado como algo mais que não fosse apenas um mero registro, isso ainda na beirinha do século XIX raspando no XX.

“Várias vezes tive a sorte de me sentir leve e espiritual na minha vida. Nesse verão dos 11 anos subindo árvores no parque; anos depois, caminhando com os escoteiros de madrugada nas montanhas; já na idade adulta, no deserto da Namíbia à volta duma fogueira olhando para as estrelas; ou simplesmente em casa, observando a chegada do outono, uma noite de luar navegando, Mozart por acaso no rádio. Mas as experiências mais intensas, mais leves, mais espirituais que atravessei passaram-se dentro d’água, fazendo surf. Esta é a única bênção que aceito. Se existe Deus, encontra-se de certeza dentro do movimento de uma onda.”
– No Princípio Estava o Mar, Gonçalo Cadilhe – Prime Books, 2005, Portugal


A biografia de Rabbit Bartholomew é fundamental. Foto: Merkel/ A-Frame

Tom Blake escreveu o primeiro livro dedicado inteiramente ao surf, chamava-se Hawaiian Surfboard e foi publicado em 1935 (relançado em 2006 como Hawaiian Surfriders). Esse livro fala sobre as primeiras lendas do surf havaiano depois do período negro que quase baniu o esporte da face da Terra. Os altos preços da madeira utilizada para fazer as pranchas e o fanatismo religioso dos missionários por pouco não acabaram com o que era considerada uma atividade pagã. O livro de Blake é, por vezes, muito técnico e aborrecido.

Blake era notável por uma série de coisas: inventividade, coragem, forma física e apuro como pesquisador, mas ele nunca foi um escritor excepcional. Com a chegada dos anos 1960 e a criação da revista Surfer pelo genial John Severson, a coisa desandou de vez para a literatura, embora ainda se manifestando apenas em artigos limitados às revistas.

Os anos 1970 trouxeram a inspiração para o que de melhor seria produzido nas décadas seguintes, com Steve Pezman, Drew Kampion, Kevin Naughton, Phill Jarratt, Paul Holmes, John Witzig e outros.

Aqui no Brasil, a revista pioneira Brasil Surf deu, pela primeira vez, espaço e voz aos surfistas, salvo a revista Pop. Na Brasil Surf, pudemos ler, pela primeira vez, os textos de Alberto Pecegueiro, Ricardo Bocão e Ricardo Bravo. Era a nossa literatura de surf engatinhando com gírias e maneirismos da época que, hoje, tem seu charme.

Foi em 1984, quando Leonard Lueras lançou o livro Surfing, The Ultimate Pleasure, um dos melhores e mais completos livros já escritos sobre o surf, que a literatura de surf atingiu outro patamar. Lueras é, hoje, completamente ignorado, mas seu livro pode ser encontrado facilmente e merece ser lido por todo e qualquer entusiasta que se preze. Seu livro elevou a qualidade do que era escrito sobre surf.

A febre dos livros e do jornalismo literário de surf pegou de vez nos anos 1990, graças, principalmente, a uma nova publicação, a The Surfers Journal. Ela deu ao surfista sua maturidade final. Steve Pezman, ex-editor da Surfer, criou uma revista para o cara mais velho, que desejava ler boas histórias nunca contatas ou esquecidas – enquanto as revistas de surf caminhavam para um perfil mais comercial, a The Surfers Journal quase não tinha anunciantes e era praticamente financiada pelos fiéis assinantes. Foi um sinal: ali descobrimos que existia, sim, um mercado de leitores de surf.

200 anos de literatura

A HARDCORE convidou quatro camaradas que pegam onda e são craques da leitura para nos ajudar a saber por onde começar a devorar livros sobre surf. Fred D’Orey, João Valente, Renan Tommaso e Felip Verger.

Fred é um dos pouquíssimos surfistas/autores com livro disponível nas maiores livrarias. Outras Ondas (Editora Gaya, 2008, Brasil) é um livro referência para quem quer ler crônicas escritas de surfista para surfista em quase 20 anos de colunas. O que ele faz muito bem é pensar alto e provocar a reflexão nessa turma indolente acostumada a folhear revistas só para ver fotos.

Em sua lista de leituras prediletas, Fred confessa ter queda pelas biografias. Sobre Bustin’ Down the Door (Harper Collins, 2002, Austrália), ele dispara: “Rabbit é inteligente, articulado e sabe rir de si próprio. Passou por muitas roubadas até virar o monstro do surf que virou. O capítulo com Kirra quebrando por semanas com mais dois na água é antológico”.

Fred também se lembra de Morning Glass (Manzanita Press, 1993, EUA): “Mike Doyle foi um dos grandes dos anos 1960. Adoro a narrativa da mudança de comportamento, quando a contracultura invadiu a praia e os cabelos cresceram, as pranchas diminuíram e ele foi morar numa comunidade hippie”. In Search of Capitain Zero, de Allan Weisbecker (Tarcher, 2001, EUA), também retrata a história de uma das figures mais controversas da história do surf: “Drogas financiaram o surf de muita gente no início dos anos 1970. Esse livro desvenda esse e outros mistérios como nenhum outro”, diz Fred.

“Nós somos como crentes numa batalha sobre quem comunga, atropelando e empurrando e furando a fila numa infantil atitude de ‘Eu primeiro! Eu primeiro!’, à medida que nos aproximamos do altar que simboliza a nossa religião. E quando finalmente atingimos o momento sagrado e conectamos com o corpo e a alma da nossa fé, o que fazemos? ‘Minha! Minha!’, torna-se o nosso mantra (…). Não há desculpa para que o nosso desejo de euforia seja tão grande que a violência se torne um meio para a obter. Esse elemento do surf simplesmente tem de mudar. E nada mais há a acrescentar”
– Glen Henning sobre o localismo


O enigmático Michael Peterson. Foto: Merkel/ A-Frame

Para ele, o livro mais bem escrito é Stealing The Wave, de Andy Martin (Bloombury, 2005, Reino Unido): “Nas mãos do autor, a rivalidade entre Ken Bradshaw e Mark Foo assume proporções trágicas”.

Selecionar uma lista decente de títulos fundamentais é tarefa das mais árduas, tamanha a quantidade de livros lançada anualmente, e, infelizmente, não aqui no Brasil.

Nossos irmãos portugueses estão alguns anos a nossa frente no mercado editorial. A revista Surf Portugal tem dois colaboradores com coletâneas publicadas dos seus melhores textos. São eles Pedro Adão e Silva e Gonçalo Cadilhe – este também colunista da HARDCORE.

Pedro Adão e Silva lançou O Sal na Terra (Betrand, 2009, Portugal), uma excelente coleção de crônicas com um dos mais eruditos e bem-articulados surfistas/autores que conhecemos. Ele escreve sobre surf com uma paixão rara e é um analista econômico dos mais respeitados em Portugal. Suas primeiras frases, na introdução do livro, dizem um bocado: “Escrever sobre surf é uma atividade pouco praticada. Um pouco ao contrário do surf, que está por todo lado”. E poucos têm os recursos de Pedro para dar o recado sem firulas… Ele escreveu assim, na crônica Lagartos que se mexem, publicada na Surf Portugal de agosto de 2008: “Para quem vive na praia, o tempo deixa uma marca indelével que vai destruindo a memória inicial. É em busca dessa imagem perdida da praia, tal como visualizaram pela primeira vez, que os surfistas partem”. Já Gonçalo Cadilhe, na minha opinião, é quem melhor escreve sobre essa estranha atividade que ainda não foi definida nem como esporte, nem estilo de vida, nem religião, nem vício (é na realidade tudo isso junto).

João Valente, diretor da Surf Portugal, outro dos nossos convidados para orientar essa pequena pesquisa pelo nosso salgado mundo editorial, escolheu o trecho que abre esse artigo e justifica: “Mesmo sendo um dos idiomas mais falados do mundo, o português está restrito aos países onde é língua corrente, causando pouco ou nenhum impacto no resto do mundo. Se assim não fosse, Gonçalo Cadilhe seria considerado um dos maiores escritores do mundo, pelo menos entre aqueles que têm no surf um dos seus temas recorrentes. Hoje, consagrado escritor de viagens, Cadilhe iniciou a sua carreira na Surf Portugal por meio de uma coluna intitulada Pulsar das Marés que, como ele mesmo gostava de afirmar sobre a designação por mim criada, ‘não significa nada, mas diz tudo’. Esses textos e outros mais foram reunidos num único volume que Gonçalo chamou de No Princípio Estava o Mar, um título que assume toda a sua dimensão no texto referido, no qual o autor revela a origem, a profundidade e impacto que o surf teve na sua vida”.

Pelo simples fato de ser editor da maior revista de surf de Portugal nos últimos 30 anos, Valente leu mais (e melhor) do que a maioria dos surfistas que conheço. De todos os diferentes estilos que dividem a literatura de surf (biografias, aventuras, entrevistas, pouca, ou quase nenhuma ficção), o gênero que mais se destaca é a crônica. João indica a leitura de uma coleção delas, escritas por diversos autores, e justifica: “No livro Surf Rage, Nat Young reuniu uma série de textos sobre localismo e violência associada à busca de ondas após ser espancado por um local em Angourie Point, na Austrália, até ir parar no hospital. Destaco o que Glen Henning – professor universitário, ex-funcionário da Nasa, membro-fundador da Surfrider Foundation e uma das mais brilhantes cabeças que já portou cabelos queimados pela fatal mistura de sol, sal e parafina – escreveu sobre as origens do localismo, comparando o fenômeno a descrições sobre a batalha de Stalingrado, na 2ª Guerra Mundial, padrões comportamentais do reino animal e disputas territoriais nos subúrbios das grandes cidades americanas. Um verdadeiro abrir de olhos para a comunidade”.

Logo em seguida da crônica, biografias são o que existe de mais interessante nas prateleiras, porque alimentam – e aumentam – as lendas que cercam nosso pequenino universo. Uma das maiores e mais misteriosas dessas histórias míticas é a da maior onda já surfada. Greg Noll a descreve em seu livro, Da Bull – Life over the Edge (North Atlantic Books, 1989, EUA). Valente é preciso ao escolher um trecho do livro, escrito em primeira pessoa: “Tal como um drop vai determinar a forma como a onda será surfada, as primeiras páginas de uma obra muitas vezes determinam não só a relação estabelecida entre livro e leitor, como sentenciam o destino final dessa relação: um namoro até a última página, ou um pequeno flerte sem consequência. A autobiografia do surfista que ajudou a definir o conceito de big rider é assim. O primeiro capítulo conta logo o culminar da sua história: a descrição da onda que Noll surfou em Makaha e que durante anos povoou o imaginário coletivo de surfistas do mundo inteiro como algo monstruoso, acima das possibilidades de qualquer ser humano. A onda que levou o surfista da Califórnia a equacionar a sua vida e que o convenceu a deixar de surfar por desconfiar que a partir daquele ponto o surf só lhe poderia oferecer dois caminhos, ambos indesejáveis: o de um aborrecimento sem sentido ou o da morte na procura de um novo sentido. A mitologia do surf no seu melhor”.

Convidamos outro editor, Felip Verger, da tradicional revista espanhola 3Sessenta. Felip é outro desses sujeitos obcecados pela cultura que rodeia o surf e tem uma memória invejável. Além de ter um excelente blog: elniega.blogspot.com

As escolhas do Felip são quase todas descrições de viagem, um dos gêneros prediletos dos leitores de revistas. Especialmente o de autoria do Dave Parmenter, que está na coletânea da Surfer, Best of Surfer Magazine (Chronicle Books, 2007, EUA), sobre uma viagem para Namíbia numa edição de janeiro de 1994 (Vol. 35, Nº 1). No primeiro parágrafo, Parmenter narra a história de um marinheiro português que vai parar na

Costa do Esqueleto, na Namíbia, e é cercado por um chacal. Eletrizante. Para Verger, Dave Parmenter, Derek Hynd e Andrew Kidman são as santíssimas trindades dos surfi stas que escrevem. Ele aconselha o livro Fôlego (Argumento, 2008, Brasil), do australiano Tim Winton, outro título fácil de encontrar por aqui.

Renan Tommaso, nosso colaborador mais jovem, descreve assim sua paixão pelos livros: “Não foi para pegar mais mulher, melhorar a capacidade cardiorrespiratória, nem por influência da galera do colégio – nasci e cresci em Volta Redonda, interior do Estado do Rio. Comecei a surfar, aos 14 anos, graças ao que lia sobre surf”. Ele continua: “Um tio, que pegava onda, deixou para mim, quando casou e se mudou, uma caixa cheia de revistas e livros de surf, que até hoje não sei se por camaradagem ou falta de espaço no Golzinho dele. Uma caixa de Pandora às avessas”.

Natural que Renan escolhesse a frase mais representativa da nossa história, que não por acaso estava no editorial do número 1 da revista Surfer, lançada em 1960: “Nesse mundo lotado, o surfista ainda pode procurar e achar o dia perfeito, a onda perfeita e estar sozinho com seus pensamentos e o surf”.

“Sentei no pico junto com os outros durante uns quarenta e cinco minutos, olhando aqueles enormes, trovejantes gigantes se aproximarem pelo norte, desde Yokohama Bay, na nossa direção. Às vezes elas pareciam tão perfeitas que você poderia jurar que estavam vendo ondas em Rincón ou Malibu, só que estas ondas tinham 30 pés de altura e os seus lips eram arremessados a 30 metros ou mais. Noutras ocasiões as ondas quebravam em seções de 200 ou 300 metros. Era uma coisa horrível, absolutamente horrível. No momento em que elas se erguiam a distância, uma dessas seções gigantes começava a quebrar e nós contávamos: ‘one thousand one, one thousand two, one thousand three…’ até que, bum! A onda se dobrava e, mesmo estando a uns 300 metros de nós, o impacto das ondas quebrando era tão grande que fazia com que as pequenas poças de água dançassem sobre o deck das nossas pranchas. Eu nunca tinha visto aquilo acontecer antes. Toda a situação me deu uma sensação de enjôo”.
– Da Bull – Life over the Edge, Greg Noll (North Atlantic Books, 1989, EUA)

Enriqueça sua surfoteca:

UMA LISTA COM OS LIVROS QUE VOCÊ AINDA VAI LER. 

NO PRINCÍPIO ESTAVA O MAR
Gonçalo Cadilhe

SURF RAGE
Nat Young

ZERO BREAK, AN ILLUSTRATED COLLECTION OF SURF WRITING
Matt Warshaw

MR. SUNSET
Phill Jarrat

OUTRAS ONDAS
Fred D’Orey

BEST OF SURFER MAGAZINE
Chris Mauro e Steve Hawk

DA BULL – LIFE OVER THE EDGE
Greg Noll

MORNING GLASS
Mike Doyle

BUSTIN’ DOWN THE DOOR
Wayne Bartholomew e Tim Baker

IN SEARCH OF CAPTAIN ZERO
Allan Weisbecker

STEALING THE WAVE
Andy Martin

SURFING, THE ULTIMATE PLEASURE
Leonard Lueras

MP: THE LIFE OF MICHAEL PETERSON
Sean Doherty

O SAL NA TERRA
Pedro Adão e Silva

ALL FOR A FEW PERFECT WAVES (THE AUDACIOUS LIFE AND LEGEND OF REBEL SURFER MIKI DORA)
David Rensin

CAUGHT INSIDE
Daniel Duane

TAPPING SOURCE
Ken Nunn

FÔLEGO
Tim Winton

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